Era uma vez, em um Brasil não tão distante, uma época em que deputados e senadores gozavam de uma proteção quase intocável contra o braço da justiça. Naqueles tempos, a chamada “blindagem parlamentar” funcionava como um escudo hermético, onde a licença prévia das Casas Legislativas transformava-se em verdadeiro passe livre para a impunidade institucionalizada. Esta não é uma fábula, mas sim a realidade histórica que o País vivenciou até o início dos anos 2000.
Hoje, em setembro de 2025, testemunhamos o ressurgir deste fantasma do passado. A Câmara dos Deputados, em decisão que ecoa os tempos sombrios da proteção excessiva, aprovou a PEC 3/2021, conhecida como “PEC da Blindagem”, por 344 votos contra 133 no segundo turno. Esta proposição, que agora caminha para o Senado Federal, não representa apenas uma mudança legislativa, mas sim a tentativa de reanimar um instituto que a própria evolução democrática brasileira sepultou.
O Peso da História: Lições Não Aprendidas
A chamada “blindagem parlamentar” sempre foi tema sensível na política brasileira. O que hoje se discute no Congresso é, em essência, a tentativa de retomar mecanismos de proteção excessiva a deputados e senadores contra investigações criminais, sob o pretexto de resguardar o livre exercício do mandato.
Esse quadro gerava uma percepção de impunidade institucionalizada, já que a imunidade, que deveria proteger o mandato, transformava-se em verdadeiro salvo-conduto pessoal. A situação levou à Emenda Constitucional nº 35/2001, que modificou o art. 53 e retirou a exigência de licença prévia, transferindo ao Judiciário a competência para processar parlamentares, restando às Casas apenas o poder de sustar a tramitação da ação penal por maioria de votos, em caráter político-excepcional.
A experiência histórica demonstra que, sob o regime anterior à EC 35/2001, a sensação de impunidade era ainda maior, pois os parlamentares não poderiam ser processados sem a prévia licença da casa, que em muitos casos não era deferida. A doutrina especializada já assinalara que esse sistema anterior criava verdadeira paralisia na persecução penal, convertendo a prerrogativa funcional em privilégio pessoal incompatível com o Estado Democrático de Direito.
A Revolução de 2001
Até a promulgação da Emenda Constitucional 35, tramitavam na Câmara 55 pedidos de licença do STF para abertura de processos, envolvendo 40 deputados federais. Este dado estatístico revela a dimensão do problema: a licença prévia transformava-se em mecanismo de obstrução da Justiça, não de proteção legítima do exercício parlamentar.
Diante desse quadro, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 35/2001, que alterou a redação do art. 53 da CF, eliminando a exigência de licença prévia do Parlamento. Desde então, a competência para processar parlamentares passou a ser exclusiva do Poder Judiciário, restando às Casas Legislativas apenas a possibilidade de sustar o andamento da ação penal por decisão da maioria de seus membros (art. 53, § 3º, CF).
A EC nº 35/2001 estabeleceu que parlamentares, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, podendo ser presos apenas em flagrante de crime inafiançável, com posterior comunicação à Casa respectiva para deliberação sobre a manutenção da prisão.
O objetivo da reforma foi equilibrar a proteção ao mandato com o dever de responsabilização penal, preservando a independência entre os Poderes.
A mudança representou verdadeira revolução copernicana no sistema de imunidades parlamentares, alinhando o Brasil aos padrões democráticos modernos de responsabilização de autoridades públicas.
O Retrocesso em Curso: Análise da Nova Proposta
A PEC aprovada na Câmara determina que parlamentares só poderão responder a ações penais com autorização da Câmara ou do Senado, estabelecendo que deputados e senadores não podem ser presos, salvo em flagrante de crimes considerados inafiançáveis, sendo necessário referendo do plenário da Casa do congressista.
As propostas que hoje tramitam para restabelecer a blindagem parlamentar resgatam modelo historicamente rejeitado pela sociedade e que se mostrou incompatível com o Estado Democrático de Direito. A eventual reintrodução desse privilégio reavivaria práticas de proteção corporativa, distantes dos valores constitucionais de responsabilidade, moralidade e igualdade (arts. 1º, caput, 5º, caput, e 37, CF).
Mais grave ainda: a proposta amplia o rol de autoridades com direito a julgamento direto no STF, incluindo presidentes nacionais de partidos com representação no Congresso, que também passam a ter foro privilegiado. Tal extensão demonstra o caráter expansivo da proteção, indo além da já questionável blindagem parlamentar.
A Afronta aos Princípios Constitucionais Fundamentais
A ressurreição da blindagem parlamentar colide frontalmente com pilares fundamentais da ordem constitucional brasileira, notadamente:
O Princípio Republicano e a Igualdade Perante a Lei
O princípio republicano impõe o princípio da igualdade como fulcro da organização política, tendo conteúdo prevalentemente negativo: a abolição e o afastamento dos privilégios. Em uma República, todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, sem distinção de condições sociais e pessoais.
A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu artigo 5º, caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Este princípio atua em duas vertentes: perante a lei e na lei, impedindo tanto diferenciações arbitrárias na elaboração normativa quanto na aplicação jurisdicional.
A Violação ao Princípio do Juiz Natural
A doutrina majoritária critica institutos de proteção processual excessiva por violarem os princípios da igualdade, do juiz natural e do republicanismo. A blindagem parlamentar, ao condicionar o exercício da jurisdição penal à vontade política das Casas Legislativas, subverte a garantia constitucional do juiz natural, criando sistema de justiça condicionada e politizada.
As Lições da Transparência Internacional
A Transparência Internacional pondera que, enquanto vigoraram regras semelhantes às da PEC da Blindagem, entre 1988 e 2001, foram inviabilizadas 253 investigações contra parlamentares, contra apenas uma autorizada. Este dado estatístico é eloquente: demonstra como a licença prévia funcionava, na prática, como mecanismo de impunidade generalizada.
A mesma organização alerta que a proposta agrava os crescentes riscos de infiltração do crime organizado na política local, já que dificulta as investigações contra deputados estaduais, uma vez que a PEC se estende também aos parlamentares regionais por força da jurisprudência do STF.
O Momento Político e suas Implicações
A votação ocorreu em meio à pressão de aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro por medidas de anistia aos condenados pela depredação do 8 de Janeiro, contando também com a insatisfação de parlamentares com investigações sobre uso de emendas. O contexto político revela o caráter interesseiro da proposta: não se trata de aperfeiçoamento institucional, mas de tentativa de blindagem contra investigações em curso.
A “PEC da blindagem” se tornou prioridade do Centrão e de grande parte da Câmara depois da ocupação das mesas diretoras pela oposição no início do semestre, sendo negociada para encerrar o motim. A proposta nasce, portanto, de barganha política, não de reflexão constitucional ou de necessidade institucional comprovada.
A Resistência no Senado Federal: Uma Esperança Democrática
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Otto Alencar (PSD-BA), demonstrou indignação com a iniciativa, declarando:
“A repulsa à PEC da Blindagem está estampada nos olhos surpresos do povo, mas a Câmara dos Deputados se esforça a não enxergar. Tenho posição contrária”.
Esta manifestação oferece esperança de que a Casa revisora possa exercer seu papel constitucional de freio e contrapeso, impedindo que o retrocesso se consume. O Senado Federal, por sua tradição de casa de reflexão e moderação, tem a oportunidade histórica de barrar este atentado aos princípios republicanos.
Conclusão: O Imperativo da Resistência Institucional
Portanto, ao discutir uma retomada dessa prerrogativa, o Parlamento brasileiro reabre um debate já superado pela sociedade e pela jurisprudência, relembrando um período em que a blindagem legislativa afastava parlamentares do alcance da lei comum, em contraste com o princípio republicano da igualdade de todos perante a lei.
A história não deve se repetir como farsa. A Emenda Constitucional nº 35/2001 representou conquista civilizatória, alinhando o Brasil aos padrões democráticos modernos de responsabilização de autoridades públicas. Retroceder significaria negar duas décadas de evolução institucional e legitimar, novamente, a percepção de que existe uma casta de intocáveis na República.
O momento exige vigilância da sociedade civil, da imprensa independente, da academia jurídica e, sobretudo, do Senado Federal, que pode e deve exercer seu papel de guardian da Constituição. A blindagem parlamentar não é prerrogativa, é privilégio. Não é proteção institucional, é escudo da impunidade. Não é garantia democrática, é negação da República.
Que a história seja mestra e que o País não permita o ressurgimento de fantasmas que a própria democracia brasileira teve a sabedoria de exorcisar. A República não comporta intocáveis. A Justiça não pode ser condicionada. A Constituição não pode ser refém de interesses corporativos.
Fontes Consultadas: