Operação Carbono Oculto: Lições de Compliance e Governança para a Prevenção de Crimes Empresariais

Operação Carbono Oculto: Lições de Compliance e Governança para a Prevenção de Crimes Empresariais

O Despertar de um Esquema Milionário

Era uma quinta-feira do mês de agosto, e o Brasil despertava para uma realidade que há muito permanecia submersa nos meandros obscuros da economia formal. A maior ofensiva já registrada no Brasil contra a infiltração do crime organizado na economia formal foi deflagrada nesta quinta-feira (28), revelando não apenas a sofisticação do crime organizado contemporâneo, mas também as fragilidades sistêmicas que permitem sua perpetuação.

A Operação Carbono Oculto, que mobiliza 1.400 agentes públicos em dez estados para desarticular um sofisticado esquema de fraudes, lavagem de dinheiro e sonegação tributária comandado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), emerge como um laboratório forense da criminologia empresarial, oferecendo lições inestimáveis sobre as vulnerabilidades da governança corporativa e a imperatividade de estruturas robustas de compliance.

A Anatomia Trazida pelas Investigações

I. A Estrutura Organizacional do Crime

O esquema investigado pela Operação Carbono Oculto representa um paradigma evolutivo na criminalidade organizada, caracterizando-se pela criação de uma estrutura empresarial e financeira paralela, infiltrando-se em toda a cadeia produtiva de combustíveis e no mercado financeiro formal. Esta configuração revela a metamorfose do crime tradicional em uma entidade econômica sofisticada, capaz de mimetizar e subverter as estruturas legítimas do capitalismo.

A operação, segundo consta nos dados públicos, operava através de múltiplas camadas de intermediação, utilizando:

1. Controle de Ativos Financeiros: Controle de ao menos 40 fundos de investimento, com patrimônio superior a R$ 30 bilhões, demonstrando uma capacidade de ocultação patrimonial que transcende a simples lavagem de dinheiro para constituir um verdadeiro sistema financeiro paralelo.

2. Integração Vertical da Cadeia Produtiva: Financiamento de quatro usinas produtoras de álcool, um terminal portuário e 1.600 caminhões de transporte de combustíveis, evidenciando uma estratégia de verticalização que permitia o controle total do processo produtivo.

3. Diversificação Patrimonial: Aquisição de mais de 100 imóveis, incluindo seis fazendas no interior de São Paulo (avaliadas em R$ 31 milhões) e uma residência em Trancoso (BA) comprada por R$ 13 milhões.

II. O Mecanismo das Fraudes Operacionais

A sofisticação do esquema manifestava-se particularmente na importação irregular de metanol, nafta e diesel, usados na adulteração de combustíveis e para fraudes fiscais de R$ 7,6 bilhões. Esta prática revela não apenas a dimensão econômica do crime, mas também seu impacto social direto sobre os consumidores, configurando uma dupla lesividade: ao erário público através da sonegação fiscal e aos consumidores através da adulteração de produtos.

A utilização de fintechs e maquininhas para movimentar valores sem rastreamento, inclusive em postos de fachada e padarias, demonstra como as inovações tecnológicas do setor financeiro podem ser subvertidas para finalidades criminosas, explorando lacunas regulatórias e supervisórias.

III. A Arquitetura Financeira do Crime

O núcleo financeiro da operação criminosa baseava-se em uma fintech de pagamento que atuava como “banco paralelo”, tendo movimentado mais de R$ 46 bilhões de 2020 a 2024. Esta estrutura explorava sistematicamente as brechas regulatórias do sistema financeiro, particularmente a utilização da “conta-bolsão”, uma conta aberta em nome da própria fintech em um banco comercial por onde transitam de forma não segregada recursos de todos os seus clientes.

A blindagem patrimonial operava através de fundos de investimentos (multimercado e imobiliários), com patrimônio de R$ 30 bilhões, controlados pela organização criminosa. Em sua maioria, são fundos fechados com um único cotista, geralmente outro fundo de investimento, criando camadas de ocultação.

As Vulnerabilidades Sistêmicas e os Imperativos do Compliance

I. A Responsabilidade Objetiva na Lei Anticorrupção

A Lei nº 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial, estabelece um paradigma fundamental para a compreensão das responsabilidades empresariais no contexto revelado pela Operação Carbono Oculto. A principal novidade é ter estabelecido a responsabilidade objetiva, ou seja a existência de irregularidade independentemente da comprovação de dolo ou culpa, para a aplicação das sanções.

Este princípio jurídico, aparentemente rigoroso, encontra sua justificação na complexidade das estruturas corporativas modernas, onde a incapacidade do direito societário de evitar a deslealdade fez surgir a pretensão de utilização do Direito Penal como instrumento de intimidação, visando melhores práticas no exercício da atividade econômica.

II. O Criminal Compliance como Imperativo Preventivo

O conceito de Criminal Compliance surge como resposta necessária às vulnerabilidades expostas pelo esquema da Operação Carbono Oculto. O Criminal Compliance pode ser definido como o sistema de contínua avaliação das condutas praticadas na atividade da empresa, destinado a evitar a violação, ainda que inconsciente, de normas criminais, ou mesmo evitar a prática de crimes contra a empresa.

A implementação efetiva de programas de compliance transcende a mera conformidade normativa, constituindo-se como ferramenta de inteligência empresarial, que ajuda gestores a tomar decisões seguras e baseadas em dados. No contexto específico das vulnerabilidades exploradas na Operação Carbono Oculto, o compliance assume dimensões críticas:

1. Due Diligence em Parcerias Comerciais: A verificação rigorosa da idoneidade de fornecedores, distribuidores e parceiros comerciais constitui elemento essencial para evitar a infiltração de organizações criminosas na cadeia de suprimentos.

2. Monitoramento de Transações Financeiras: A implementação de sistemas de detecção de padrões anômalos em transações financeiras, particularmente aquelas que envolvam instituições de pagamento e fintechs.

3. Governança de Fundos de Investimento: O estabelecimento de controles rigorosos sobre a origem dos recursos investidos e a identificação dos beneficiários finais de estruturas de investimento.

III. A Responsabilidade dos Administradores

A análise da Operação Carbono Oculto revela a importância crítica da responsabilidade pessoal dos administradores na prevenção da infiltração criminosa. O domínio da informação do compliance officer, atrelado a sua função, lhe impõe condutas ativas de prevenção de irregularidades e cessamento.

A jurisprudência brasileira, consolidada no julgamento da Ação Penal 470 (Caso Mensalão), estabeleceu precedentes importantes sobre as ações do Diretor de Controle e compliance e a Vice-Presidente do Comitê de Prevenção à lavagem e compliance do Banco Rural, demonstrando que a responsabilidade criminal pode alcançar os agentes de compliance quando estes se omitem no exercício de suas funções preventivas.

Diretrizes Preventivas e Estruturas de Mitigação de Riscos

I. Conformidade com as Normas da CVM

No contexto específico das estruturas de fundos de investimento utilizadas na Operação Carbono Oculto, a conformidade com as normas da Comissão de Valores Mobiliários assume relevância particular. As gestoras de recursos devem implementar políticas rigorosas de:

1. Know Your Customer (KYC): Identificação inequívoca dos cotistas finais de fundos de investimento, evitando estruturas em cascata que obscurecem os beneficiários últimos.

2. Análise de Origem de Recursos: Verificação da legitimidade da origem dos recursos investidos, particularmente em casos de grandes aportes em dinheiro.

3. Monitoramento Contínuo: Implementação de sistemas de detecção de padrões suspeitos de movimentação financeira.

II. Compliance Antitruste e Concorrencial

A integração vertical demonstrada pela organização criminosa na cadeia de combustíveis suscita questões importantes sobre a aplicação das normas antitruste. A Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência) estabelece mecanismos preventivos que, se adequadamente implementados, poderiam ter detectado a concentração irregular de poder econômico.

1. Notificação de Atos de Concentração: As aquisições realizadas pela organização criminosa, se devidamente notificadas ao CADE, teriam passado pelo escrutínio das autoridades concorrenciais.

2. Programas de Leniência Antitruste: A implementação de canais internos de denúncia poderia ter identificado práticas anticoncorrenciais associadas ao esquema criminoso.

III. Gestão de Riscos Tributários

A sonegação fiscal constituiu elemento central do esquema investigado, com créditos tributários federais de um total de mais de R$ 8,67 bilhões em pessoas e empresas integrantes da investigação. A prevenção destes riscos requer:

1. Auditoria Fiscal Contínua: Implementação de sistemas automatizados de verificação de conformidade tributária.

2. Segregação de Funções: Evitar a concentração de responsabilidades fiscais em um único agente, reduzindo o risco de manipulação.

3. Monitoramento de Fornecedores: Verificação da regularidade fiscal de fornecedores e parceiros comerciais.

IV. Estruturas de Denúncia e Proteção de Testemunhas

A sofisticação e o tempo de operação do esquema criminoso revelam a importância de canais efetivos de denúncia interna. Um programa de integridade é importante não só pelo caráter preventivo, ao fortalecer o combate à ocorrência de fraudes e irregularidades na empresa, mas também por ser um fator atenuante, com redução de penalidades, em um eventual processo de responsabilização com base na Lei Anticorrupção.

Lições Estratégicas para Gestores e Administradores

I. A Cultura Organizacional como Primeira Linha de Defesa

A análise da Operação Carbono Oculto revela que a prevenção efetiva de infiltração criminosa requer mais que sistemas e procedimentos; demanda uma transformação cultural profunda. Mais do que um conjunto de regras, o compliance estabelece uma cultura de integridade que orienta colaboradores e gestores em todas as decisões, reduzindo vulnerabilidades e fortalecendo a confiança da empresa.

Esta cultura de integridade deve permear todos os níveis organizacionais, estabelecendo que a integridade nos negócios admite até a perda de um contrato e não gera punição quando o colaborador responsável está cumprindo o Código de Conduta da organização.

II. Tecnologia e Inteligência na Detecção de Fraudes

A utilização sofisticada de fintechs pela empresas demonstra a necessidade de implementação de tecnologias de detecção igualmente avançadas. Os gestores devem investir em:

1. Inteligência Artificial para Detecção de Padrões: Sistemas capazes de identificar comportamentos anômalos em transações financeiras.

2. Blockchain para Rastreabilidade: Implementação de tecnologias de registro imutável para cadeia de suprimentos críticas.

3. Analytics Preditivos: Utilização de dados para antecipação de riscos e vulnerabilidades.

III. Governança de Terceiros

A extensão da rede investigada através de fornecedores, distribuidores e parceiros sublinha a importância crítica da governança de terceiros. Os administradores devem implementar:

1. Due Diligence Intensificada: Verificação aprofundada da idoneidade de parceiros comerciais.

2. Monitoramento Contínuo: Acompanhamento permanente do desempenho e comportamento de terceiros.

3. Cláusulas Contratuais de Compliance: Inclusão de obrigações específicas de conformidade em contratos com terceiros.

Conclusão: O Imperativo da Evolução Regulatória

A Operação Carbono Oculto não foi só um choque que estremeceu todo o sistema financeiro brasileiro, mas é um espelho que reflete as fragilidades sistêmicas de nosso arcabouço regulatório e supervisório. As brechas na regulação desse tipo de instituição que impedem o rastreamento do fluxo dos recursos e a identificação, pelos órgãos de controle e de fiscalização, dos valores movimentados revelam a urgência de uma modernização regulatória abrangente.

A revogação das normas da e-Financeira em 2025, após onda de fake news sobre o tema, exemplifica como a desinformação pode comprometer instrumentos essenciais de transparência e controle. Esta situação sublinha a importância de uma comunicação efetiva sobre as finalidades legítimas dos mecanismos de supervisão financeira.

Para os gestores empresariais, a lição fundamental da Operação Carbono Oculto reside na compreensão de que o compliance não constitui apenas uma obrigação legal, mas um imperativo estratégico de sobrevivência organizacional. Em um ambiente onde as empresas podem ser responsabilizadas civil e administrativamente por atos de corrupção cometidos em seu benefício, independentemente de comprovação de culpa ou dolo, a prevenção torna-se não apenas prudente, mas absolutamente essencial.

A narrativa inicial da Operação Carbono Oculto serve como um memento mori para o mundo corporativo: em uma era de crescente sofisticação criminosa e responsabilização objetiva, apenas aqueles que abraçarem genuinamente os princípios de integridade, transparência e conformidade normativa poderão navegar com segurança pelas águas turbulentas da economia contemporânea.

O futuro pertence às organizações que compreenderem que o compliance não é um custo, mas um investimento; não é uma restrição, mas uma vantagem competitiva; não é uma imposição externa, mas uma escolha estratégica pela perenidade e pela legitimidade social de suas operações.


Este artigo foi elaborado com base em informações públicas disponíveis sobre a Operação Carbono Oculto e na doutrina jurídica especializada em compliance, direito empresarial e direito penal, visando contribuir para o aperfeiçoamento das práticas de governança corporativa e prevenção de riscos no ambiente empresarial brasileiro.