Como advogado criminalista especializado em crimes empresariais, tenho acompanhado com atenção os recentes desdobramentos jurisprudenciais que impactam diretamente a segurança jurídica das empresas e seus dirigentes. A recente decisão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a requisição direta de dados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) representa um marco significativo na proteção de garantias constitucionais fundamentais no âmbito das investigações criminais.
No último dia 14 de maio de 2025, por maioria de 6 votos a 3, a 3ª Seção do STJ, ao julgar os processos paradigmáticos RHC 174.173/RJ, RHC 169.150 e REsp 2.150.571, firmou entendimento de que “a solicitação direta de relatório de inteligência financeira pelo Ministério Público, ao COAF, sem autorização judicial é inviável”. Essa decisão trouxe uma definição que era obscura ao Tema 990 do Supremo Tribunal Federal (STF), que não esclarecia diretamente a legalidade da autorização a requisição direta de dados financeiros por órgão de persecução penal sem autorização judicial.
Esta decisão merece nossa atenção não apenas pelo seu conteúdo técnico-jurídico, mas principalmente pelos seus reflexos práticos no ambiente empresarial e na condução de investigações que envolvem movimentações financeiras. Neste artigo, pretendo analisar os fundamentos dessa decisão, seus impactos positivos para a segurança jurídica e o devido processo legal, além de oferecer recomendações práticas para empresários e executivos que desejam atuar em conformidade com as normas vigentes.
O Contexto Jurídico e o Tema 990 do STF
Para compreendermos adequadamente a relevância da decisão do STJ, é fundamental contextualizar o debate jurídico que a precede. Em 4 de dezembro de 2019, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 990 de repercussão geral (RE 1.055.941/SP, Relator Ministro Dias Toffoli), firmou o entendimento de que é possível o compartilhamento integral de dados obtidos por órgãos de fiscalização e controle com o Ministério Público, para fins penais, sem necessidade de autorização judicial prévia.
Essa decisão do STF, tomada por 9 votos a 2, validou o compartilhamento espontâneo de informações entre a Receita Federal, o COAF e os órgãos de investigação. No entanto, um ponto crucial permaneceu em aberto: a decisão não abordou explicitamente a possibilidade de requisição ativa desses dados pelos órgãos de persecução penal.
A doutrina especializada tem tradicionalmente defendido que o acesso a dados protegidos pelo sigilo bancário para fins de investigação criminal está sujeito à reserva de jurisdição. Essa posição doutrinária reforça a necessidade de cautela na interpretação do alcance do Tema 990 do STF.
Essa lacuna interpretativa gerou divergências significativas tanto no próprio STF quanto no STJ. No Supremo, a 1ª Turma adotou posição mais ampliativa, entendendo que a tese do Tema 990 autorizaria também a requisição direta de dados pelo Ministério Público. Em abril de 2024, a 1ª Turma do STF, por unanimidade, confirmou decisão que validava o envio de dados do COAF diretamente à polícia, sem necessidade de autorização judicial.
Na decisão, o ministro relator sustentou que a redação do Tema 990 permite essa interpretação. Essa posição, contudo, não é pacífica na doutrina nem na jurisprudência.
Já a 2ª Turma seguiu linha mais restritiva, considerando que a produção de informações depende de supervisão judicial. Ainda em 2024, a 2ª Turma do STF, em decisão unânime, impediu o MP de requisitar diretamente à Receita Federal dados fiscais de contribuintes para uso em investigações criminais, sem autorização judicial, reforçando que o entendimento do Tema 990 permite que o Fisco compartilhe dados com o MP, mas não autoriza o caminho inverso.
No STJ, a divergência também se manifestou entre suas turmas. A 5ª Turma, por maioria, entendeu ser legítima a requisição de informações ao COAF pelo Ministério Público, desde que houvesse a instauração prévia de inquérito formal. Em contrapartida, a 6ª Turma firmou, por unanimidade, o entendimento de que é ilegal a requisição direta de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) ao COAF por autoridades policiais sem autorização judicial.
Foi nesse cenário de interpretações conflitantes que a 3ª Seção do STJ, composta pelas 5ª e 6ª Turmas, decidiu uniformizar o entendimento sobre o tema, estabelecendo uma posição clara até que o STF se pronuncie definitivamente em plenário.
Fundamentos da Decisão do STJ: A Proteção do Devido Processo Legal
A decisão da 3ª Seção do STJ, relatada pelo ministro Messod Azulay Neto no julgamento do RHC 174.173/RJ, ocorrido em 14 de maio de 2025, fundamenta-se em princípios constitucionais essenciais, especialmente o da reserva de jurisdição. Ao analisar detidamente a questão, o relator destacou que, embora o COAF não investigue nem quebre sigilo bancário diretamente, os Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) contêm informações financeiras protegidas constitucionalmente, sendo considerados dados sensíveis.
Essa posição encontra respaldo na doutrina especializada. Estudos acadêmicos tem analisado a necessidade de reserva de jurisdição para solicitação de dados financeiros ao COAF pelo Ministério Público, concluindo que a proteção constitucional do sigilo bancário exige controle judicial prévio para acesso a essas informações.
O ministro enfatizou que, mesmo com a constitucionalidade do compartilhamento espontâneo reconhecida pelo STF no RE 1.055.941/SP, a requisição ativa de RIFs exige controle judicial prévio. Isso porque o acesso direto a esses relatórios, ainda que não represente quebra formal de sigilo, envolve informações sensíveis que demandam a proteção da reserva de jurisdição.
Na visão majoritária da 3ª Seção, ampliar o alcance do Tema 990 para permitir requisições ativas sem controle judicial violaria o princípio da reserva de jurisdição, pilar fundamental do Estado Democrático de Direito. Esse princípio estabelece que determinadas medidas, por sua natureza invasiva ou potencialmente lesiva a direitos fundamentais, devem ser submetidas à apreciação prévia do Poder Judiciário.
A questão da legalidade dos pedidos informais de dados do COAF é complexa e demanda análise cuidadosa, especialmente considerando que decisões recentes da 2ª Turma do STF, citando o Tema 990, reforçaram a necessidade de controle judicial para acesso a determinados tipos de dados financeiros.
É importante ressaltar que essa decisão não impede o compartilhamento de informações entre o COAF e os órgãos de investigação. O que se exige é apenas que, quando houver interesse investigativo específico em obter dados financeiros de determinada pessoa física ou jurídica, essa requisição seja intermediada pelo Poder Judiciário, garantindo assim o devido processo legal e evitando potenciais abusos.
Durante o julgamento, foi destacado um ponto crucial: sem inquéritos formalmente instaurados, os RIFs podem ser guardados em delegacias sem o devido controle. Essa realidade evidencia um dos riscos concretos da ausência de controle judicial: a possibilidade de coleta indiscriminada de dados sensíveis sem a devida formalização de procedimentos investigativos.
Impactos Positivos da Decisão para a Segurança Jurídica Empresarial
A decisão do STJ representa um avanço significativo na proteção do devido processo legal e traz impactos positivos diretos para o ambiente empresarial. Como advogado que atua diariamente com empresários e executivos, posso afirmar com convicção que essa decisão fortalece a segurança jurídica em diversos aspectos:
1. Previsibilidade e Transparência nas Investigações
Ao exigir autorização judicial para a requisição de RIFs, a decisão do STJ promove maior transparência e previsibilidade nos procedimentos investigativos. Empresas e seus dirigentes passam a ter a garantia de que suas informações financeiras sensíveis só serão acessadas mediante análise prévia de um magistrado, que verificará a legalidade, necessidade e proporcionalidade da medida.
Essa garantia está alinhada com o que a doutrina especializada denomina “jurisdição constitucional hesitante”, conceito que analisa a necessidade de reserva de jurisdição para a quebra de sigilo bancário nos termos da Lei Complementar nº 105/2001.
2. Proteção Contra Fishing Expeditions
Um dos argumentos mais contundentes apresentados durante o julgamento foi o risco de “fishing expeditions” – prática investigativa em que se buscam indícios de crimes de forma genérica e especulativa, sem indícios concretos prévios. A decisão do STJ cria uma barreira importante contra esse tipo de abuso, exigindo que as requisições de dados financeiros sejam fundamentadas e específicas.
Durante o julgamento do RHC 174.173/RJ, foi citado o caso de um escritório de advocacia que teve um RIF requisitado com centenas de nomes, sem investigação formal. O relatório ficou oculto por mais de um ano e serviu como base para um inquérito, sem qualquer controle judicial. Situações como essa representam riscos significativos para empresas e profissionais, que podem se ver envolvidos em investigações abusivas sem o devido processo legal.
3. Equilíbrio Entre Eficiência Investigativa e Garantias Fundamentais
É importante ressaltar que a decisão não impede ou dificulta investigações legítimas. O que se estabelece é apenas um filtro judicial que garante o equilíbrio entre a necessária eficiência na persecução penal e o respeito às garantias fundamentais dos investigados. Esse equilíbrio é essencial em um Estado Democrático de Direito e beneficia tanto a sociedade quanto o ambiente de negócios.
Análises jurídicas recentes destacam que a decisão do STJ não proíbe o uso de relatórios do COAF em investigações, apenas exige que esses relatórios, quando requisitados diretamente (e não compartilhados espontaneamente), passem pelo crivo judicial antes do envio.
4. Fortalecimento da Cultura de Compliance
A decisão também incentiva indiretamente o fortalecimento de programas de compliance nas empresas. Com a clareza de que há limites para a atuação investigativa e que o Judiciário atua como guardião desses limites, as organizações tendem a investir mais em mecanismos internos de prevenção e detecção de irregularidades, promovendo uma cultura de integridade e conformidade legal.
Essa perspectiva é corroborada por estudos acadêmicos que analisam a viabilidade jurídica de utilização de relatórios de inteligência financeira em investigações criminais, destacando a importância de medidas judiciais acautelatórias, como o afastamento de sigilo bancário, para garantir a legalidade das provas obtidas.
Recomendações Práticas para Empresários e Executivos
Diante desse cenário jurídico, compartilho algumas recomendações práticas para empresários, CEOs, CFOs e demais executivos que desejam proteger suas organizações e atuar em conformidade com a legislação:
1. Fortaleça seu Programa de Compliance
Invista em um programa de compliance robusto, que não apenas identifique riscos, mas também estabeleça controles efetivos sobre movimentações financeiras. Um programa bem estruturado deve incluir políticas claras sobre transações financeiras, treinamentos regulares e canais de denúncia eficientes.
2. Mantenha Documentação Adequada de Transações Financeiras
Toda transação financeira significativa deve ser devidamente documentada, com registro claro de sua finalidade, partes envolvidas e aprovações necessárias. Essa documentação será fundamental caso a empresa precise justificar determinadas operações em contextos investigativos.
3. Realize Auditorias Internas Periódicas
Auditorias internas regulares podem identificar precocemente operações atípicas ou inconsistências nos registros financeiros, permitindo correções antes que se tornem objeto de comunicação ao COAF ou investigação formal.
4. Conheça as Obrigações de Comunicação ao COAF
Diversos setores econômicos possuem obrigações específicas de comunicação de operações suspeitas ao COAF. Conheça as obrigações aplicáveis ao seu setor e implemente processos para garantir o cumprimento dessas exigências legais.
5. Busque Orientação Jurídica Especializada
Ao primeiro sinal de que sua empresa pode estar sob investigação relacionada a movimentações financeiras, busque imediatamente orientação jurídica especializada. A intervenção precoce de um advogado criminalista com experiência em crimes empresariais pode fazer toda a diferença no desfecho do caso.
6. Estabeleça Protocolos de Crise
Desenvolva protocolos claros para situações de crise, incluindo procedimentos específicos para lidar com requisições de informações por autoridades. Esses protocolos devem definir responsabilidades, canais de comunicação e medidas imediatas a serem adotadas.
Um Exemplo Prático: O Caso da Empresa XYZ
Para ilustrar a importância da decisão do STJ e suas implicações práticas, apresento um exemplo hipotético baseado em situações reais que tenho acompanhado em minha atuação profissional.
A Empresa XYZ, uma construtora de médio porte com atuação em São Paulo e Paraná, realizou, ao longo de dois anos, diversas transações financeiras de valores elevados com fornecedores estrangeiros para importação de materiais especializados. Essas transações, embora perfeitamente legítimas e documentadas, chamaram a atenção de uma instituição financeira devido ao seu volume e frequência, que divergiam do padrão histórico da empresa.
Seguindo suas obrigações legais, a instituição financeira comunicou essas operações ao COAF. Sem que a empresa soubesse, o Ministério Público, ao receber essa informação de forma espontânea pelo COAF, decidiu requisitar diretamente ao órgão um Relatório de Inteligência Financeira detalhado não apenas sobre as operações específicas, mas sobre todas as movimentações financeiras da empresa, seus sócios e principais diretores nos últimos cinco anos.
Com base nesse relatório, obtido sem autorização judicial, o MP instaurou um inquérito por suposto crime de lavagem de dinheiro. A empresa só tomou conhecimento da investigação quando foi surpreendida com medidas cautelares que bloquearam parte de seus ativos e impediram a continuidade de operações comerciais essenciais.
Ao analisar o caso, a defesa da empresa identificou que o RIF havia sido requisitado diretamente pelo MP ao COAF, sem qualquer controle judicial prévio. Com base nesse fundamento, questionou a legalidade das provas obtidas e, consequentemente, de todas as medidas cautelares delas derivadas.
Aplicando o entendimento agora consolidado pelo STJ no julgamento do RHC 174.173/RJ, RHC 169.150 e REsp 2.150.571, o juiz do caso reconheceu a ilicitude da prova, determinando o desentranhamento do RIF e de todas as provas dele derivadas, além de revogar as medidas cautelares impostas. A empresa, que havia sofrido prejuízos significativos e danos reputacionais, pode finalmente retomar suas atividades normais.
Este exemplo demonstra como a exigência de controle judicial prévio para requisição de RIFs não é uma mera formalidade processual, mas uma garantia fundamental que pode fazer toda a diferença na proteção dos direitos de empresas e seus dirigentes contra investigações potencialmente abusivas.
Conclusão: O Fortalecimento do Devido Processo Legal
A decisão da 3ª Seção do STJ, proferida em 14 de maio de 2025, representa um importante avanço na proteção do devido processo legal e na segurança jurídica para o ambiente empresarial brasileiro. Ao estabelecer que a requisição direta de Relatórios de Inteligência Financeira pelo Ministério Público ou pela Polícia junto ao COAF exige autorização judicial prévia, o tribunal reafirma o princípio da reserva de jurisdição como pilar fundamental do Estado Democrático de Direito.
Como advogado criminalista que atua diariamente com empresários e executivos, tenho observado que a proteção de garantias processuais não é apenas uma questão técnico-jurídica, mas um elemento essencial para a própria saúde do ambiente de negócios. Empresas e seus dirigentes precisam de segurança jurídica para investir, inovar e crescer.
É importante ressaltar que essa decisão não impede ou dificulta investigações legítimas sobre crimes financeiros. O que se estabelece é apenas um filtro judicial que garante o equilíbrio entre a necessária eficiência na persecução penal e o respeito às garantias fundamentais dos investigados.
Enquanto aguardamos uma manifestação definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, a posição do STJ oferece um norte seguro para empresários, executivos e seus assessores jurídicos. Mais do que nunca, é fundamental contar com orientação especializada para navegar nesse complexo cenário regulatório e investigativo.
A proteção do devido processo legal não é um privilégio, mas um direito fundamental que beneficia toda a sociedade, garantindo que as investigações sejam conduzidas com respeito às garantias constitucionais e evitando abusos que podem comprometer não apenas reputações individuais, mas a própria credibilidade do sistema de justiça.